Juízo (2007) de Maria Ramos; Close-up (1990) de Abbas Kiarostami e os Structural Films norte-americanos (anos 60). Três continentes, três culturas, três épocas diferentes. Entre eles encontramos muitas especificidades particulares e pontos de confluência. O que é certo é que são filmes que participam e dialogam com a tradição do documentário e também entre si; como ponto fundamental de diálogo encontra-se a importância dos dispositivos de filmagem usados.
Juízo se passa no Rio de Janeiro. Ele fala sobre como a Justiça brasileira trata menores infratores. O dispositivo usado é composto pela montagem de cenas documentais e partes reencenadas, com atores em condições semelhantes as dos menores em julgamento. Close-up é um filme iraniano. Ele fala sobre Hossain Sabzian, um homem pobre que se passa por Makhmalbaf, importante e popular cineasta do Irã, para uma família rica, apaixonada pelo cinema. Aqui o julgamento de Sabzian foi filmado e nos fins de semana, o julgamento era reencenado para que o diretor pudesse questionar o réu. O filme estruturalista (Structural Film) é um movimento de cinema dos Anos Sessenta que trabalhavam o filme do modo que a forma se sobressaísse sobre o conteúdo. Os diretores se utilizavam de dispositivos rígidos, muitas vezes predeterminados e/ou simplificadores.
Juízo e Close-up se convencionaram na linha tênue que distinguimos hoje ficção e documentário. Ambos abordam fatos reais (não encenados) com momentos “fictícios” (reencenados). É importante lembrar que em ambos os casos os “atores” estão muito próximos da “realidade”. Em Juízo, os menores atores compartilham de uma situação de vida muito próxima à dos réus, um inclusive chegou a cumprir pena. Em Close-up, são as próprias pessoas que participaram da história, é Sabzian e a família Ahankhah que o processou. Este é o primeiro dispostivo que os une, mas qual o motivo que impeliu os realizadores a utilizá-lo?
De acordo com a lei brasileira não é permitido exibir o rosto de um menor infrator. Para este problema ser solucionado, Maria Ramos coloca exatamente no mesmo lugar, porém dias depois do julgamento, o ator que se assemelha e reproduz fielmente as falas dos adolescentes. A coordenação é feita com precisão, negando ao expectador a dúvida sobre a montagem - falseada. Kiarostami tomou conhecimento da personificação de Makhmalbaf através de uma revista, o que impossibilitou-o de filmar os acontecimentos como se decorriam. Dando uma mostra do prestígio do diretor e do interesse dos iranianos pelo cinema, todos os envolvidos aceitam participar do filme atuando como si mesmos. Assim, é possível obter um impressão da história mais visual que a entrevista e mais interessante do que com atores, a coordenação é feita de forma que não se diferencia facilmente o julgamento da reencenação.
“As quatro características do Structural films são a posição fixa da câmera (fixa da perspectiva do espectador), o efeito de pisca-pisca, o uso do looping e a refilmagem projetada na tela.” (Bernardet, Jean-Claude; Caminhos de Kioristami, pág 15)
Não há, em Close-up e nem em Juízo o uso da refilmagem projetada na tela. Os dois filmes, porém, abusam do dispositivo da reencenação do outro ou de si mesmo, que pode ser compreendido como uma forma de refilmagem. Dialogando com a idéia da refilmagem projetada na tela é visto, por exemplo, no filme Crônicas de um Verão (1960) de Jean Rouge e Edgar Morin, uma exibição, uma filmagem desta e visão que os participantes adquiriram de si mesmo e do outro.
Jean-Claude Bernadet fala em seu livro sobre o filme Wavelength e a utilização de um dispositivo de câmera – o movimento de zoom in constante, que não se altera, independente das ações do roteiro, das interferências externas e permanece durante toda a duração do filme, 45min. Kiarostami também se utiliza desse recurso de câmera – na figura do close-up – para intensificar seu momento de interferência no julgamento. Com esse recurso e suas perguntas incisivas, ele penetra profundamente nas questões existenciais e psicológicas de Sabzian.
O dispositivo de manter a câmera fixa, imóvel na perspectiva do espectador é também uma característica dos filmes estruturalistas e não é visto em Juízo, nem em Close-up. Mas podemos ver ele em funcionamento em um outro filme de Kiarostami – Dez – onde duas câmeras são fixas no capô de um carro, uma para a motorista e outra para o banco do carona. O que se vê com isso é a abertura às interferências externas. O que passa nas ruas está fora do controle do diretor.
E o que seria o uso do looping que Bernardet afirma ser uma base dos Structural Films? Em inglês, significa o ato dar voltas contínuas. Na linguagem cinematográfica, pode-se entender como a repetição de uma cena já vista. Se pensarmos esse conceito de forma abrangente, pode-se questionar se não é aplicado esse dispositivo em Close-up, uma vez que vemos primeiramente a seqüência da prisão de Sabzian do lado de fora da casa – os policiais e o taxista esperando, com a trama acontecendo dentro da casa. Somente no final do filme se retoma à essa seqüência, sendo vista de dentro de casa, com a trama sendo encenada.
No entanto, se a refilmagem for pensada como uma forma de expor a característica fílmica, ou seja, que os acontecimentos pertencem a uma obra cinematográfica, então ambos os filmes se distanciam dos Structural Films americanos, pois se utilizam deste dispositivo sem induzir o espectador a questionar a diegése, a realidade fílmica. O dispositivo de câmera usado no Close-up também pode ser visto como um distanciamento entre o filme e o movimento fílmico, pois o diretor se utiliza do dispositivo de forma em prol do conteúdo, o close up leva o espectador a entrar mais profundamente no íntimo do réu. Os filmes estruturalistas por sua vez utilizam a forma como molde de todo o filme, incluindo a trama/conteúdo, que deve se encaixar na fôrma previamente imposta.
Em relação ao “looping” também há distanciamento entre os filmes analisados e o movimento fílmico. Mesmo que a cena da prisão no filme iraniano seja vista duas vezes, de ângulos distintos, ainda assim pode-se pensar que este dispositivo seja, para os estruturalistas, uma repetição da mesma cena filmada da mesma maneira, do mesmo ponto de vista; ou ainda como em Wavelength, onde é a repetição de quadros no movimento de zoom in, que acaba por criar uma distorção no tempo fílmico.
É impossível que Juízo, Close-up e os Structural Films sejam absolutamente iguais. O próprio contexto no qual foram feitos já impossibilita que isso possa acontecer. É perceptível que há características dos filmes estruturalistas nos dois filmes estudados e isso é compreensível, pois antes do filme de Kiarostami, filmes como Wavelength e (nostalgia) já haviam sido realizados e este precede o filme de Maria Ramos. Eles utilizaram os dispositivos para resolver questões de filmagem e ao mesmo tempo agregaram valor de linguagem a seus filmes. No diálogo com a tradição do documentário, pode-se dizer que eles se inspiram em alguns conceitos do movimento dos Anos Sessenta, sem tentar reproduzi-los. Caso tentassem recriam por inteiro os dispositivos e a estética estruturalista, o que se veria seriam meras cópias; o que se vê são obras ricas que servirão de base para diálogo com produções futuras.