terça-feira, 30 de junho de 2009

Globo Repórter: a experiência autoral dos anos 1970

Autores: Elisa Christophe e Rodolfo Bittencourt

Durante os últimos 20 anos o programa Globo Repórter vem se estabelecendo como uma janela de exposição da verdade. Seu formato, de linguagem e estética padronizada, ignora as possibilidades de experimentação que poderiam ser exploradas na produção de documentários. Mais do que isso, ele cristaliza um conceito de verdade naquele que pretende ser a “voz da razão” (ou até mesmo, a voz de Deus).

No entanto, esta padronização nem sempre foi uma constante na trajetória do programa. Durante a década de 70, quando foi criado, a equipe do Globo Repórter contava com cineastas de vanguarda (entre eles Walter Lima Jr, Eduardo Coutinho, Joaquim Batista de Andrade e Hermano Penna).

Nesta época, não só o programa tentava descobrir qual seria seu formato, mas os cineastas-repórteres que o produziam também “estavam descobrindo não só a linguagem do documentário cinematográfico como o próprio espaço expressivo da televisão” (Bragança, s/d)[i]. Desta forma, como descreve Consuelo Lins (2004)[ii], esta fase foi marcada por uma experiência de documentário muito singular, apesar da ditadura e da censura.

Duas destas “experiências singulares” são os filmes Wilsinho da Galiléia, 1978, de João Batista de Andrade, e A Mulher no Cangaço, 1976, de Hermano Penna, cujo hibridismo entre realidade e ficção pode ser destacado.

Em Wilsinho da Galiléia, a reconstituição das circunstâncias da morte do bandido é intercalada pelos depoimentos dos atores que falam sobre os personagens que estão representando. Além disso, planos do ator que faz o papel de Wilsinho são usados para ilustrar as descrições feitas por pessoas que o conheciam.

Já em A Mulher no Cangaço, a reconstituição é feita de forma mais tradicional, ilustrando a voz em off das mulheres que viveram aquelas experiências. Entretanto, não seria errado dizer que outra forma de ficção acontece no filme de Hermano Penna. As seqüencias em preto e branco não são imagens documentais no sentido strictu sensu. Elas são “imagens de memória (p&b) filmadas em planos longos e contemplativos, sempre silenciosos, como que em continuidade com os clássicos registros de cangaceiros realizados por Benjamin Abraão” (Bragança, s/d)[iii].

Em ambos os filmes a presença do repórter é minimizada de forma que o tema do programa seja o foco central e para não haver uma restrição do conteúdo. Então, os diretores/repórteres montavam um roteiro para o programa, que não houvesse a narração do apresentar, Sérgio Chapelin.

Especialmente em Wilsinho da Galiléia, a narração taxativa, conhecedora da verdade, na voz do apresentador é inexistente. O filme permite que haja espaço para dúvidas e incertezas e que, neste caso, a mãe de Wilsinho seja a condutora da história. E não é somente a dúvida que rodeia o filme, mas inúmeras verdade e não-verdades sobre um “personagem” multifacetário que era conhecido como um assassino frio, mas que em seu meio social, se transformava em alguém bondoso e afetivo.

No programa dirigido por Hermano Penna, também há espaço para a ambigüidade. A apresentação de personagens que participaram do meio, porém com visões diferentes, permite que o telespectador tenha uma dúvida sobre qualquer verdade “absoluta” criada anteriormente sobre o assunto. É como se os cineastas percebessem a importância da televisão como meio de informação de massa, e um forte aliado, contra o governo da época. Pois a crítica ao governo não se restringia somente as questões de liberdade de expressão, mas a imagem que se vendia para o povo de um “país em crescimento”.

Outro aspecto importante de ser ressaltado é o contexto histórico em que estes documentários eram produzidos. Num momento em que ainda havia uma censura oficial e que a televisão, assim como as outras mídias, não podia mostrar aspectos do governo e suas instituições que manchassem sua reputação, o filme Wilsinho da Galiléia apresentava relatos no mínimo intrigantes. Relatos de corrupção da polícia, que fabricava crimes para tentar chegar até o criminoso.

Além disso, ao contrário do que ocorre hoje em dia, a câmera era um olhar subjetivo do problema, pois os diretores sabiam que qualquer enquadramento poderia ser considerado uma forma de protesto, ou incitação a manifestações. Assim, eles usavam uma câmera com seu tempo morto. Um tempo que não estava para quem produzia ou assistia, mas que compunha todo o ambiente para melhor “explicar” o entorno dos personagens. Outro ponto conceitual do programas era que a câmera não se escondia, era a participação explícita daquele olhar e como ele transforma o ambiente.

Em Wilsinho da Galiléia o microfone aparece várias vezes, e o diretor transpassa qualquer barreira da não-participação entre o objeto e o sujeito. Era uma quebra da característica principal do jornalismo que se baseia na representação/descrição do real, sem qualquer envolvimento com as partes. Por essas transformações conceituais e estruturais que o Globo Repórter da década de 70 foi tirado do ar. Porque questionava qualquer tipo de verdade absoluta, com uma visão político-antropológica da cultura brasileira, baseado na ambigüidade. Eles produziam assuntos que estavam nos telejornais, mas com o intuito de faz as pessoas pensarem. Logo, um programa com 60 pontos de audiência não poderia continuar no ar. E talvez essa tenha sido a última vez que foi produzido um produto na TV aberta que discuta o conceito de estrutura estética e jornalística.



[i] BRAGANÇA, Felipe. A TV desconhecida: Globo Repórter/Globo Shell Especial [online]. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/39/tvdesconhecida.htm s/d. Acessado em 27/6/2009
[ii] LINS, Consuelo. O Documentário de Eduardo Coutinho. Jorge Zahar Editora, 2004.
[iii] BRAGANÇA, Felipe. Amulher do cangaço, de Hermano Penna [online]. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/39/mulher.htm s/d. Acessado em 27/6/2009

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