segunda-feira, 6 de julho de 2009

Autora: Ana Beatriz Salgado

No filme Serras da Desordem, Andrea Tonacci fala sobre Carapiru e sua experiência de uma década de isolamento por causa da intervenção do homem ganancioso, que quer tomar as terras para si, e deparar-se com a sociedade brasileira no final dos anos 80. O diretor narra a vida desse personagem a partir da sua identificação com essa historia, pois no momento que resolveu fazer o filme ele passava por uma situação de possibilidade de separação de seu filho. O diretor, através de Carapiru, também traduz seu sentimento frente ao mundo globalizado que passa por cima de ideais em prol de seu próprio beneficio, desapropriando terras de tribos indígenas a fim de desmatar e usar as árvores para alimentar as indústrias.

Como Jean-louis Commolli diz em seu texto “Sob o risco do real’”, “os filmes documentários não são somente abertos para o mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo”. O filme de Tonacci é aberto para as questões sociais e políticas do Brasil moderno. O personagem bota em xeque a idéia desse mundo supostamente globalizado, moderno, industrial e com direitos iguais a todos. O índio fica a mercê do Estado e da FUNAI, são eles que decidem seu paradeiro, ele não tem mais autonomia sobre seu destino. Foi o próprio Carapiru quem escolheu ir até o povoado da Bahia após dez anos de isolamento e se deixou ser encontrado para enfim conviver com outras pessoas, mas o Estado intervém e o leva a Brasília e Sidney Possuelo apropria-se de seu destino e de sua narrativa.

Há uma cena marcante no inicio do filme onde vemos, por longo tempo, a tribo indígena nua, banhando-se na água e divertindo-se, interagindo entre eles sem prestar atenção na câmera. Num primeiro momento, é difícil imaginar que uma tribo que supostamente não tem contato nenhum com tecnologia esteja ignorando tão facilmente a presença daquele aparato tecnológico. Eles passam uma naturalidade, plenitude naquele momento. Pelo comprimento da seqüencia, esquecemos que é um registro e entramos na diegese do filme. O tempo ‘morto’, onde nada substancial acontece realmente, representaria o tempo dos índios, o tempo da natureza, um tempo que Tonacci gosta de chamar de “vivo”.

O diretor aponta um discurso, referências que nós brasileiros vivemos, mas a que o índio foi sempre alheio, “uma espécie de ‘enquanto isso...’, com Carapiru errante pelo interior do país e Tonacci experimentando empiricamente os humores daquela imagem”, numa espécie de vídeo-clip, comentando o projeto de modernidade brasileira.

Ao final do filme, a ilusão de que o aparelho funcionara por conta própria sem direcionar o olhar é desfeita, a partir do momento que percebemos que Carapiru vai para o mato sozinho e o vemos cercado pelo diretor e sua equipe, filmando o começo do filme em que ele foi retratado isoladamente, reencenando o tempo que passou sozinho na mata. Após o baque do esfacelamento da ilusão, Carapiru aparece sentado olhando pra câmera na forma ‘tradicional’ de documentário e começa a falar sua língua nativa, o guajá. Mesmo sem entendermos uma palavra, é um dos raros momentos em que ele aparece falando, parece querer contar algo. É possível ver isso por sua expressão no olhar e por seus gestos. Não precisamos entender o que ele diz pra entender o que ele quer dizer, por isso a opção do diretor de não botar legenda, que reduziria e aprisionaria seu discurso. Durante a fala do índio, ele aponta algo no céu e a câmera instintivamente nos leva até lá. Passa um avião de computação gráfica, que dá uma sensação de embate, conflito, como se aqueles dois mundos não pertencessem um ao outro. É quase um embate, a modernidade dos brancos esmagadora das diferenças. Há, ao que me parece, um estranhamento de mundo, colisão de realidades que se contrapõe, mas também se complementam por habitarem o mesmo espaço. Tonacci narra essas “fissuras do real, daquilo que resiste” ao mundo capitalista pragmático e programado. É um personagem que produz “buracos ou borrões nos programas, que escapam da ordem majoritária” ¹. É o que interessa ser apresentado, descoberto, esmiuçado.

A tendência do cinema é convergir “para o jornalismo, para o mundo dos acontecimentos (...) elaborando a partir deles ou com eles as narrativas filmadas; e se separa do jornalismo na medida em que não dissimula estas narrativas, não as nega, mas, ao contrario, afirma seu gesto, que é o de reescrever os acontecimentos”. Tonacci combina sua narrativa com elementos jornalísticos, mas não se apóia neles como base, e sim como uma forma de reafirmar que aquilo realmente aconteceu, que não é uma narrativa fictícia mesmo que se reencene certos aspectos da vida do índio. O cinema funcionaria como uma “repetição do conhecido”, um reforço do que já aconteceu, do que já existe independente dele. Assim, “o projeto documentário se forja a cada passo”, reinventa-se em seu processo, cria em cima do que já existe, mas dá uma nova conotação e monta uma narrativa a partir desse ‘real’, não utilizando as imagens necessariamente na mesma ordem. A montagem é crucial para dar novo sentido a planos porque depende do contexto em que está inserido. Quando vemos Carapiru na aldeia isolado e comendo sozinho, naquela situação, dá a impressão de que ele não se inseriu na tribo novamente, como se tivesse, por escolha própria, permanecido apartado. No caso, Tonacci explica que, por ter ido à cidade, Carapiru adoeceu, por isso o afastamento.

Serras da Desordem busca “representar a estranheza de mundo”, escancarar o que “a ficção em nossa volta nos esconde escrupulosamente”, que “a cena é aberta, fendida, rompida” e que não somos conjuntos fechados. Temos a liberdade de representar e disseminar essas possibilidades de transgressão. Somos tão fechados dentro do sistema que nos é impensável passar dez anos vagando sozinhos, no mato. Mas é a partir do momento que vemos que há outras possibilidades, válvulas de escape, e que temos todo o potencial de acioná-las se bem entendermos.
Autor: Carlos Eduardo Ribeiro Confort

Rua de Mão-Dupla, de Cão Guimarães é uma experiência das mais agradáveis no audiovisual experimental.

A idéia a do filme é, em primeira analise, simples e pode ser simplificadamente descrita: Um grupo de seis pessoas é dividido em três duplas. A cada pessoa é dada uma câmera para que filme sua estadia de 24 horas na casa da outra pessoa de sua dupla. Os participantes / personagens do projeto não possuem qualquer informação sobre aqueles de quem os apartamentos filmam e é a partir desta estadia que as impressões serão construídas, impressões estas que serão captadas pelo diretor no final dessas 24 horas. As imagens da filmagem de cada dupla são apresentadas simultaneamente com a tela dividida.

Até aí se percebe uma idéia simples. Porém com o passar do filme torna-se notável que o objeto, antes visto como o perfil que um é capaz de traçar do outro, é muito mais que isso. A pessoa que filma o apartamento alheio e cria uma imagem do morador daquele imóvel tem como base apenas suas referencias de vida; sua educação, seu entendimento de mundo, gostos e etc... A partir daí fica claro que ao expor suas impressões os personagens acabam por expor muito mais eles próprios; quem eles são, o que lhes chama mais atenção, o que pensam sobre gostos diferentes e como se comportam perante eles, seus valores e concepções de como deve ser a vida.

A intenção de objetivar a relação das pessoas com o outro através de sua relação com elas próprias torna-se, em Rua de Mão-Dupla, possível graças as restrições que o próprio diretor cria e impõe ao formato como esse filme é feito. São seus dispositivos.

Com esta afirmação feita é possível relacionar as analises de composição e objeto do filme com um trecho do livro Caminhos de Kiarostami, de Jean-Claude Bernardet. Neste trecho, que vai da página 11 até a página 43, Jean-Claude Bernardet destrincha alguns aspectos estéticos do direto iraniano Abbas Kiarostami.

Podemos relacionar o filme de Cão Guimarães com partes da analise de Bernardet. Logo na página 11 Bernardet relaciona o titulo do filme Ten, de Kiarostami, com a forma com que esse filme é composto, em 10 Blocos. Isso, segundo o autor, sendo a leitura mais obvia. Porém já na pagina 14 Bernardet faz ressalvas: “[...] apesar da referência rigorosa à construção, o número do título não deixa de ser algo aleatório, pois ele poderia ter nove ou onze blocos e o título seria Nove ou Onze” (pág. 14). Ainda assim, até aí, o titulo refere-se apenas a composição de Ten.

Já em Rua de Mão-Dupla a analise pode ser mais aprofundada. O titulo, de cara e até mais instantaneamente que em Ten, remete a composição do filme, a tela dividida em duas deixa clara essa associação. Tudo acontecendo em duas vias ao mesmo tempo, cada uma indo a uma direção. Somado a isso, temos a possibilidade de associação do titulo do filme ao seu conteúdo. As relações interpessoais já são por natureza uma via de mão-dupla, Cão Guimarães nesse filme estica esse conceito, deixando difusa e/ou tênue a fronteira entre analise do outro e auto-exposição.

“Estrutura e temática se relacionam” (pág. 26). Essa afirmação e feita a respeito de outro filme: (nostalgia), de Holis Frampton, que tem as mesmas características na relação entre composição e tema que Rua de Mão-Dupla.

O outro texto que vai de encontro com as analises de Rua de Mão-Dupla é Carta de Marselha sobre a auto-mise em scène.

Ao fazer a leitura do texto tendo o filme de Cao Guimarães em mente, a primeira sensação que se tem, o primeiro pensamento, precipitado, é de que o formato poderia eliminar a auto-mise em scène.

Levando em consideração algumas passagens da carta:
- “Há em todo mundo um saber inconsciente do olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, de postura”
- “Todos aqueles que eu filmo são já atores em outras mises em scène, que precedem e, às vezes, contrariam aquela do filme”

Isso ocorre por dois motivos: Os apartamentos estão vazios, as únicas pessoas presentes em cena são os próprios personagens que estão por trás da câmera. Porém essa impressão, de novo, precipitada caem por terra quando os personagens aparecem em cena. Em duas situações: Na primeira eles dizem suas impressões sobre o morador do apartamento onde ainda estão. Fica claro o “saber inconsciente do olhar do outro”. O músico comporta-se diante da câmera, exatamente como se espera que um músico se comporte, as falas, os gestos, tudo cabe perfeitamente naquele personagem e na sua relação de imagem com o mundo e do mundo com ele.

O mesmo ocorre com o ato de beber um vinho, durante a cena, de uma mulher de classe media-alta e o de sentar no chão, em jornais de um poeta.

É no fim do bloco de cada dupla, principalmente, já que o músico se coloca em cena logo no inicio do filme, que a auto-mise em scène se faz presente de forma flagrante.

Como pode se perceber nesta analise, o filme de Cao Guimarães é um filme recheado de camadas e pode e deve ser analisado por varias perspectivas diferentes e que, felizmente, se completam tornando-o um projeto, como dito no começo desse texto, uma experiência bastante agradável.
Autor: Gregório Fernandes

Os filmes Um Instante de Inocência e Salve o Cinema, ambos de Mohsen Makhmalbaf, interligam-se durante a escolha de atores para participarem de um filme a ser rodado. O que os candidatos não sabiam é que os testes constituem a própria estória de Salve o Cinema, onde o fascínio pelo cinema é demonstrado de diversas maneiras. Ínumeras pessoas se debatem para conseguir realizar o teste. A cada um o diretor pergunta a respeito do interesse pelo cinema e quais os motivos que levaram a seguir a carreira de ator. Como prova da capacidade, ordena-lhes que chorem em poucos segundos. Muitos fracassam, outros tentam encontrar algum motivo para explicar a dificuldade em chorar numa ocasião artificial. As máscaras utilizadas no cinema são viradas do avesso neste teste em que cada um declara seu amor às artes que fazem parte do espetáculo cinematográfico.

Um dos candidatos que se apresenta, mas que não aparece no filme, é um ex-guarda do Xá da Pérsia, que o diretor havia esfaqueado na época de sua luta contra o governo, durante a revolução islâmica de 1979 no Irã. Foi durante o teste dele que surgiu a idéia do cineasta de filmar o episódio do esfaqueamento em Um Instante de Inocência. A trama gira em torno da procura dos atores para os papéis vividos pelo diretor e pelo guarda, mostrando todos os conflitos vividos por ambos na criação de seus personagens, reavaliando seus significados.

Esta parte do cinema iraniano convoca multidões a exporem suas fantasias em frente às câmeras, encarnando a ficção que vêem nas telas, ao mesmo tempo que faz das ações e fatos reais seu material para um filme. A direção pede que o mundo ao redor indique as seqüências a serem filmadas. Isto não significa uma ordem aleatória e muito menos fugidia da linha de um roteiro. A produção artística reveste-se de todo o trompe l’oil (imitação, montagem, encenação), mesmo se utilizando de atores locais ou protagonistas que vivenciaram os fatos para contar sua estória paralela ao documento do real.

O encontro do espetáculo cinematográfico com o documentário, da ficção com a realidade, pode ser visto em Close-Up, filme de Kiarostami de 1990. Um caso policial intrigante chamou a atenção do cineasta para que ele fosse atrás dos envolvidos na ocorrência: um homem que dizia ser Mohsen Makhmalbaf conseguiu ganhar a confiança de uma família para então freqüentar sua casa com a desculpa de que iria utilizá-la como locação de filmagens, e de que chamaria seus moradores a participarem de um filme. A farsa é desmascarada e o suposto Makhmalbaf é preso. A equipe de Kiarostami vai até a prisão e se encontra com o farsante. Ele confessa seu fascínio pelo cinema, e diz que fez tudo isso por admiração as obras de Makhmalbaf. Em seguida, o diretor pede autorização ao juiz que julgará o caso para filmar o ato. Durante o tribunal, o cinema participa de forma direta nas ações que ocorrem na sessão, o diretor chega a fazer perguntas ao acusado para complementar as interrogações do juiz. O autor da fraude explica que os filmes de Makhmalbaf dizem respeito a sua vida de pobre e desempregado, e que seu desejo era ser um diretor de cinema.

Através da recomposição dos elementos dados, a aproximação do mundo externo com a intenção do artista, é feita de maneira a oferecer um novo olhar ao que vemos. O verdadeiro e o falso Makhmalbaf saem juntos de moto carregando flores. O cinema pede aos acontecimentos da vida o seu material e a permissão para que faça sob outros olhos sua gravação, focalizando os aspectos que fogem do mero registro testemunhal.

sábado, 4 de julho de 2009

Documentário: entre a conclusão e a relativização

Autora: Renata S. de C. Lima

“A MULHER NO CANGAÇO” E A LINGUAGEM TELEVISIVA

Acho este trabalho um misto entre documentário e ficção, assim como um misto entre filme e vídeo para tevê. A linha entre essas definições é tênue e na dúvida adotarei o termo documentário por estar se tratando de um tema antigo.

Descritivamente, as características do filme são: a ficção que reencenaria a vida dos cangaceiros, marcada pela imagem em preto e branco, em slow motion e a dublagem de algumas falas dos atores; uma narração predominantemente do repórter, mas também feita por uma cangaceira; as entrevistas em colorido; a música muito presente nos momentos de ficção; imagens feitas com cangaceiras “atualmente”, que podem ser reencenações, ou não (creio mais que não sejam); e a equipe que não aparece nas imagens.

Analisarei estes dados para falar um pouco como eu enxergo o filme. Começarei pela narração. Ela é feita por um repórter a partir de um texto sobre cangaceiros que alguém da rede globo escreveu. Isso já é uma ficção. Ele derivou provavelmente de uma pesquisa que imagino ter sido muito baseada na memória dos que viveram de alguma forma com ou como cangaceiros. A memória seria, então, uma primeira ficção, que existe antes daquela, presente também na narração da própria cangaceira. De alguma forma, o que ela fala é tanto “criação” quanto o que o repórter lê. Apesar disso, eles têm o papel bem diferente no filme.

O jornalista seria o responsável por trazer a verdade, por enquadrar o grupo num discurso fechado sociológico formal, quase didático, superficial engessado em só um ponto de vista e que não deixa os personagens se mostrarem, ao contrário controla-os, e o mais perigoso: dramatiza exageradamente e o esteriotipa. Os cangaceiros se tornam só uma coisa, o que o programa quer que sejam. Ele não aborda aquelas pessoas no seu particular, no que elas tem de especial, mas de forma geral, se preocupando em enquadrá-las em um papel cênico e em tornar a vida dos cangaceiros um filme de aventura prontinho para ser vendido, no qual muita gente irá acreditar. Você não vê, sente e assim constrói o que seria um cangaceiro, você recebe um discurso pronto, fechado. Essas, para mim, são características muitos fortes na linguagem da televisão, já presentes naquela época, das quais achei que o filme não conseguiu escapar.

Frases que ilustram tudo isso são: “Ele surge de uma realidade cultural complexa e de uma realidade social cheia de contradições”; “O cangaço se transformou em símbolo da coragem da fé e da fama.” (indícios do gênero aventura); “Esse esforço social da mulher do nordeste como o de qualquer mulher pobre de qualquer lugar do mundo, pode ser visto no seu desenvolvimento muito precoce...”; “e ela sonha com o direito de ser feliz” (dramatização/será que elas eram infelizes? Como falar por elas?); “A cangaceira era como uma mulher qualquer, uma espécie de dona de casa sem casa” (mulher=dona de casa); “Como qualquer mulher ela sofre as restrições ao tabu e às restrições de casa”(esteriotipando o lugar da mulher na sociedade).
Pessoalmente, acho que a narração do repórter realmente atrapalha muito e traz outro sentido ao filme.

Quanto à narração de cangaceiras, é uma fala mais pessoal, mais próxima do “real”, da estória, mais espontânea. Nos fornece dados subjetivos para construirmos aquela história, através do sotaque, gírias, entonação... Se formos pensar, é meio estranho alguém, no caso o repórter que não viveu nada daquilo, depois de anos, falar com tanta certeza sobre este assunto. Por outro lado, achei também, que essa narração serviu para reafirmar o que a narração do repórter dizia.

Pensando em relação às entrevistas, achei que enriquece o filme vermos as ex-cangaceiras falarem, mas, por outro lado, achei que foram selecionadas as partes da entrevista que correspondiam de alguma forma ao esteriótipo de mulher sofrida. Deu-se uma importância muito grande à essa idéia. Não sei se isso ocorreu também, porque os entrevistados estavam tentando dizer o que achavam que o entrevistador esperava ouvir. Não sei se essas pessoas tinham acesso à televisão, naquele momento, mas a própria presença da câmera já pode ter trazido essa pressão. “A vida é dura, passando fome para cuidar de todos os três...”

As imagens são de dois tipos, umas encenadas e outras documentadas. Ambas têm grande força e criam um imaginário muito forte. Elas falam muito por si só. A idéia da encenação é muito interessante, pois recria-se pessoas e o cangaço de uma forma que ás vezes esquecemos que é tudo ficção. Ela é uma realidade em si, ou seja, ela foi elaborada a partir de memórias mas abordando tudo de uma nova forma, com um ar místico. A música, também faz parte dessa ficção e ela tem um papel muito importante de nos envolver, mas sem rotular. Acho que em outro filme, talvez ouviríamos uma musica de wester.

“WILSINHO GALILÉIA” E SUA RIQUEZA DE ABORDAGENS

O documentário é muito rico e profundo. Primeiro pela variedade de tipos de imagens. São usadas encenações, falas dos atores se apresentando e falando sobre o seu personagem, depoimentos, imagens de arquivo de jornais e filmadas, imagens narradas pelo diretor rapidamente, imagens de cobertura principalmente de crianças e imagens que remetem ao processo de filmagem. Elas são usadas de forma livre, independente, ou seja, nem sempre a imagem é a correspondente à do áudio; ou se vê a pessoa cuja voz estamos ouvindo; ou se mostra o que se fala. A câmera é livre e em algumas horas abandona o tema principal para passear pelo local.

Não há radicalismo em relação à forma. O que evidencia isso é como o diretor deixa o filme falar e por isso o acaso penetrar. Ele propõe situações, como ir entrevistar o irmão mais novo de Wilsinho ou como os atores se apresentarem; inclui o que acontece na filmagem que não foi programado e que mostra a dificuldade de algumas pessoas em falar para um filme, como na cena em que o irmão foge da entrevista ou que o dono da casa briga com o diretor dizendo que não quer participar; a mudança de postura da mãe do Wilsinho quando passa a ser a entrevistadora, não a entrevistada e ganha do diretor autonomia para isso; a voz dada à criança que queria também dar seu depoimento; as perguntas que buscavam saber o porque mas que deixavam os entrevistados dizerem o que quisessem. Isso tudo fala do Wilsinho, mas também do fazer documentário e da metodologia do diretor . O que também comprova isso é o fato de não esconderem suas perguntas e de mostrarem sua mão segurando o microfone o que não era muito bem visto pela Globo como dizia no texto “ A escola da televisão” e o que não ocorre no filme do Hermano Penna. Lá o repóter-herói aparece, mas o repórter-diretor não (um exemplo é a entrevista à ex-cangaceira) .

Outro aspecto é que o diretor vai fundo no assunto; não se satisfaz com a resposta, mas vai até ela. Primeiro, pela diversidade de opiniões, não se busca fechar um significado e convencer o público dele, mas mostrar os vários “eus” de Wilsinho, como tem qualquer pessoa, humanizando-o. Depois, pela necessidade de complementar as informações ao mostrar como era o lugar em que morava o personagem , as pessoas da família dele, os presos que conversaram sobre o porque de roubar. Sempre perguntando o porque das coisas; o João Batista de Andrade não se contenta apenas com depoimentos superficiais. Se a mãe de Wilsinho fala sobre os irmãos dele, o diretor vai até eles para ouvir deles o que têm a dizer.

Voltando a quando o diretor filma o local onde Wilsinho morava, ele dava um grande enfoque às crianças e pensei que talvez ele pudesse estar remetendo a um possível espírito infantil do personagem ou à infância pobre do protagonista e que talvez aqueles meninos possam ter o mesmo futuro trágico.

O filme traz uma busca por respostas, mas não por conclusões..

A narração aqui, quando é por parte de quem “domina” o filme, tem a função rápida de passar informações introdutórias, factuais como idade e o dia da morte. Nunca convencer, falar por alguém, explicar, contar ou emitir opinião como no filme de Hermano Penna.

Outro artifício usado é a brincadeira com o tempo. Ele faz com que o ator que representa o Wilsinho, mas que está morto, interaja com o presente. Isso ocorre quando uns homens dão seu depoimento num bar e de repente o Wilsinho/ator entra e começa um assalto ou quando na cena final ele visita a sua casa que fora queimada. Quando vemos imagens só do Wilsinho olhando para a câmera e ouvimos suposições sobre sua vida e suas motivações, parece que o Wilsinho estava vendo o que falavam, rindo e achando tudo isso engraçado e talvez sem importância.

Falando mais especificamente sobre a ficção criada, o diretor coloca um ator para representar o Wilsinho e o recria, faz ele ser uma pessoa, de alguma forma, interessante, apesar de todas as pessoas que matou, não de um cara mau. Há uma grande ficcionalização do personagem Wilsinho mas que o filme deixa claro que é um dos muitos Wilsinhos do filme. O perigo aqui, das pessoas tomarem como verdade aquele Wilsinho não existe pois no documentário deixa-se claro que ninguém ainda conseguiu “dominar” a personalidade dele. Já no filme “As mulheres no cangaço” mostra-se apensa um ponto de vista, o da edição, do narrador.

Por último, há uma organização circular. Começa com ele sendo morto e vemos isso pelo lado de fora da casa, somente ouvidos os barulhos e termina da mesma forma, mas desta vez acompanhamos isso de dentro do apartamento. Uma interpretação possível é que não há fim, saída, resposta, certeza.

Os dois filmes embora feitos na mesma época são bem diferentes. Enquanto um conclui o outro busca relativizar.O primeiro está mais aos moldes do documentário televisivo da Globo e o outro não sei como, conseguiu driblar melhor o controle da mesma. A temática que aborda uma forma de representar o povo ( em um o cangaceiro em outro o delinqüente)e a ficção(por mais diferente que sejam as imagens) sejam talvez pontos em comum entre eles.

Os dispositivos do real em “Juízo” e “Dez”

Autores: Rodrigo Castello Branco e Yuri Amorim

Existe um traço que liga “Juízo”, de Maria Augusta Ramos a “Dez” de Abbas Kiarostami: este traço é certo tipo enquadramento fixo que chama atenção para si mesmo, evidenciando o dispositivo por trás de ambos os filmes. Por mais díspar que um filme seja do outro, desde seu projeto, suas ambições e temáticas, tanto o brasileiro quanto o iraniano guardam algumas semelhanças que nascem da questão de um dispositivo que irá nortear do início ao fim a narrativa; mais do que evidenciado, este dispositivo será anunciado – em cartelas numéricas em “Dez” ou textuais em “Juízo”.

Jean-Claude Bernardet discorre sobre o rigor dos dispositivos nos filmes-estruturais americanos dos anos 60 em seu texto sobre o longa de Kiarostami. “Juízo” poderia entrar nessa definição, embora sofra de menos rigor do que estes outros. Seu “relaxamento” consiste em não seguir na totalidade do tempo um método específico, embora o núcleo do filme seja todo ele baseado em um dispositivo claro. Já que Maria Augusta não podia filmar os menores do Padre Severino, ela resolveu elaborar uma construção rígida em que todas as falas seriam encenadas, todas filmadas da mesma forma, com uma câmera digital fixa no tripé, apontada para o mesmo local, com os atores posicionados iguais e falando na mesma direção.

Essa mesma descrição poderia servir, em parte, para “Dez” de Kiarostami. A utilização da câmera digital fixa apontada para personagens que se alternam em aparições repete o mesmo procedimento de “Juízo”. No entanto, enquanto que Maria Augusta parte de uma necessidade, Kiarostami parte de uma escolha. Kiarostami faz uma seleção do espaço, de um recorte do enquadro dentro de um recorte maior, do carro; Maria Augusta parte de um recorte já estabelecido pela ordem natural dos acontecimentos e deste espaço proposto pelo mundo confecciona a sua ficção. Kiarostami de certa forma também não deixa de se utilizar do mundo para dele criar seu enquadramento: da janela lateral do carro ele seleciona o ângulo, que vai determinar o quanto de exterior, de interior e de personagem a câmera vai pegar. Em “Juízo”, o fundo branco, imutável; em “Dez”, as ruas de Teerã são o que evidenciam o carro em movimento. A mesma origem para o dispositivo, inúmeras possibilidades.

Ambos os diretores escolheram o digital para realizar seus filmes. Essa escolha ressalta mais uma questão importante: a intermitência da gravação, chamando mais uma vez a atenção para o dispositivo, para essa câmera onipresente sala de audiência ou no automóvel. A possibilidade de se filmar sem parar. Em “Dez”, a própria noção de “diretor” e “equipe” é redefinida, visto que por trás das câmeras só o mundo, enquanto Kiarostami ficava escondido. Em “Juízo”, existe também uma outra questão de direção, um pouco mais complexa, que acaba chamando para a discussão o texto do Jean-Louis Comolli “Sob o risco do real”.

Comolli fala de uma “impossibilidade do roteiro” ao se fazer um filme documentário; em “Juízo”, o caso é ambíguo. Existe a necessidade de um roteiro a partir de uma não-necessidade; o roteiro nasce desse real. O real é o roteiro, só que a impossibilidade de apreender esse real faz com Maria Augusta recrie esse real, reproduza seus detalhes, suas falas idênticas, seus gestos e entonações. O roteiro que Maria Augusta propõe para seu dispositivo não passa de uma mimese do que realmente aconteceu; a ficção não passa de uma cópia do real, inclusive ao se colocar atores “que poderiam ser os mesmos infratores”, que passaram pelas mesmas condições.

Comolli posiciona o real num local que “se encontra lá com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas, em todo o tecido que trama a máquina cinematográfica”. O “real” em “Juízo” parece se encontrar realmente “fora da imagem” mas “presente nos corpos”. O real está no corte, entre a juíza falastrona e o ator mirim. O real se esboça nesse momento. No corte cronológico e óbvio que seguiria de um campo para o contracampo; pois a juíza contempla o real enquanto o ator contempla o ficcional; entre os planos que nasce essa força, pois a juíza contracena com o verdadeiro e o ator repete os gestos do verdadeiro. O dispositivo se funda nesse embate constante entre aquilo que aconteceu e a reprodução do acontecido. Um campo nunca se unificará com o outro, pois foram confeccionados em espaços-tempos distintos; “Juízo” nega uma reunião que “Dez” vai ter como condição básica (porém escondida).

Em “Dez”, o espaço entre os cortes também sempre se isola. Um personagem não extrapola o seu campo, não cruza para o outro, fechado em seu recorte 4:3, na sua janela. No entanto, em “Dez”, a própria organização do dispositivo possibilita esse reencontro entre os dois planos. Se em “Juízo” algo se perde e depois se funda num intervalo de corte, em “Dez” há sempre o acúmulo constante, a enumeração das cartelas e a edição que vai ladeando os planos e os personagens, até o momento em que o dispositivo fica submetido “a pressão do real”, como coloca Comolli. O dispositivo se deixa ruir, se entrega para o real, para algo incontrolável, para um gesto que nem o próprio Kiarostami poderia coordenar (embora deva ter dirigido) – quantas vezes será que foi repetido? Será que foi repetido? De qualquer forma, o real não só do mundo, mas dos personagens, dos seres humanos, da própria câmera – o real de tudo acaba com o dispositivo, o derruba, que cruza os quadros, que vence uma barreira invisível. E esse não deixa de ser o objetivo de Kiarostami: construir um dispositivo que não se encerre em si mesmo, que não se feche ao mundo. A carreira do diretor iraniano não possibilitaria esse enclausuramento. Mesmo em “Five”, provavelmente seu filme mais hermético, há uma saída, algo que foge do controle da câmera.

Tanto em “Juízo” quanto em “Dez”, é o tal “profeta do desconhecido de um mundo a vir” que se materializa nos dispositivos. Que mundo é esse não se sabe. Em “Juízo”, o dispositivo sai da sala de audiência para se perder nas celas. A brincadeira dos presos não é controlada (ainda mais, é inventada na hora para a diretora gravar), vence um plano fixo, rígido, dá movimento à passividade do ator que executa gestos. O embate mais uma vez entre aquilo que pode ser controlado e o incontornável peso do real. E quando isso ocorre, tanto os menino, a mãe, a prostituta ou os meninos do Padre Severino se tornam seres de cinema. Habitantes de mundos restritos. A tela de cinema, um recorte do mundo; a sala de audiência, um recorte dentro da tela, assim como o carro e sua janela para o mundo. A tela de cinema como janela para o mundo, para o real. O real que brota de qualquer lugar, de um mundo em movimento ou de um mundo paralisado. Um real espontâneo ou controlado, um real que não se define, não toma forma; pelo contrário, se espreita pelas beiradas, se esgueira entre um plano e outro e desse instante, desse fragmento de centésimo, nasce do dispositivo.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Aproximação do Real

Autora: Paloma Marquez

Em minha avaliação final, citarei os dois filmes que me fizeram sair da aula de aula e continuar pensando neles e questionar de forma critíca pela sua forma e conteúdo: “Os Idiótas”, de 1998 dirigido por Lars Von Trier e “Serras da Desordem”, de 2006 dirigido por Andrea Tonacci, em contrapartida com o texto “O choque do Real”.

O filme de Lars Von Trier é uma experiência e tanto, onde basta assistir e entrar na loucura estabelecida pelo grupo que se isola na busca de entender a loucura e a forma como as pessoas lidam com o choque entre o mundo real e o mundo da loucura, onde um grupo de pessoas junta-se numa casa e dedicam-se a procurar o idiota que está dentro de cada um, entrando em "paranóia", babando-se e passando em público por verdadeiros deficientes mentais, como forma de se libertarem dos seus problemas e de chocarem as instituições burguesas. O filme nos confunde o tempo todo, pois não fica claro se é realidade ou ficção. Se os atores estão atuando com outros atores ou as reais instituições burquesas. Depois de um certo período, chega a altura do exame, isto é, de levar a loucura para o meio "normal" do qual tiraram férias. A forma é tão pura (luz, som, figurino, cenários, caracterização dos personagens) e seu conteúdo tão envolvente que nos faz sentir dentro do filme. Intenção principal do Dogma 95, criado pelo diretor, entre outros, este que contém exigências muito particulares que se agrupam numa espécie de dez mandamentos afim de fazer um cinema com conteúdo e poucos recursos. E o experimentalismo no cinema é sempre bem vindo, nem que seja para variar um pouco da convenções estabelecidas. Dentre elas: não filmar em estúdio, não usar adereços de cena, não gravar som separado da imagem, não colocar a câmara num suporte, filmar em cor sem utilização de iluminação especial, sem filtros ou tratamento óptico, sem ação superficial (homicídios, armas, etc), no tempo presente (sem "alienação geográfica e temporal"), filmes de gênero estão proibidos, o formato é Academia 35mm (o formato clássico, praticamente idêntico ao da TV), o realizador não pode ser creditado.

Se não fosse pela última condição, o segundo filme que vou citar poderia estar na condição de receber um reconhecimento do Dogma 95. “Serras da Desordem” conta, sob o olhar muito específico do autor, a história de Carapirú, um índio nômade que escapa de um ataque surpresa de fazendeiros. Durante 10 anos ele perambulou sozinho pelas serras do Brasil central, até ser capturado à 2000 km de distância de sua fuga inicial. Levado a Brasília pelo sertanista Sydney Ferreira Possuelo, virou manchete em todo país e centro de uma polêmica entre antropólogos e lingüistas em relação à sua origem e identidade. Na tentativa de identificar sua origem ele reencontra um filho, com quem retorna ao Maranhão. Porém o que Carapirú encontra ao retornar já não está mais de acordo com sua vida nômade. Toda essa história é contada através de uma real representação da realidade. Muitos personagens que viveram a história na época (década de 90) participa do filme. Na minha opinião isso fica bem claro, pois o filme é bem arrastado e fácil perceber que aqueles personagens estão atuando e não é apenas um documentário. Existe ficção. Carapirú é exposto, por vontade própria, ao exibir toda a sua ingenuidade diante das coisas comuns para a sociedade.

Fazendo um paralelo entre as histórias e o texto, analisei que em ambos os filmes o os diretores demonstram que choque com o real transforma e que esse tipo de cinema, que mistura documentário com ficção, é muito próximo do real humano. Vivemos essas situações constantemente entre realidade e atuação. No fundo, o grupo de idiotas de Lãs Von Trier, que se procura livrar da racionalidade que lhes permite viver em sociedade, é constituído por pessoas buscando o choque da sociedade (dinamarquesa) ao se deparar com a problemática mental e acabam enlouquecendo ao final (realidade? Não sabemos mais uma vez) e o índio Carapirú que se choca ao se deparar com uma realidade desconhecida e tão interessante, que o faz se envolver a ponto de se modificar e perceber isso no momento em que retorna para sua aldeia.

Autora: Sheila Santos da Silva

“Para haver um documentário, é preciso uma exterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de um lado da linha, sem se tocarem. Um objeto só se torna objeto de documentário, no momento em que o sujeito se reconhece isolado desse objeto.” Arthur Omar

“Eu bem sei que estou na sala de cinema e que sou espectador... mas esqueço disso assim mesmo para acreditar na representação, para injetar nela sua carga de realidade, sua intensidade de experiência vivida.”
Aquele que eu filmo me vê. O sujeito filmado se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia, nela coloca em jogo sua própria mise em scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro.”
Jean Louis Comolli

A câmera de Maria Augusta que opta pela estética do cinema direto, estética caracterizada pela não interferência do que acontece diante dela, nos apresenta uma realidade assustadora: a realidade de muitos jovens das periferias brasileiras.

No inicio do filme temos uma cartela que nos alerta para o uso de atores no filme. Maria Augusta coloca atores para encenar os momentos em que os jovens aparecem de frente, pois a lei não permite que o rosto dos jovens acusados apareça. Mesmo com essa interferência a relação de exterioridade de Arthur Omar está presente. A exterioridade que permite a existência de um documentário. Em que o sujeito, Maria Augusta, parece não interferir na ação do objeto, jovens, responsáveis, juíza e promotores. Nesse filme sujeito e objeto não se tocam, está cada um de um lado da linha.

Durante a narrativa o espectador esquece que nem sempre o depoimento é dado pelos jovens acusados. O espectador se entrega ao que vê e ouve, ele esquece para acreditar na representação , para injetar nela sua carga de realidade, sua intensidade de experiência vivida como afirma Comolli. A representação, nesse caso, aproxima o espectador do real.
Em Juízo o que move e envolve o expectador não é a câmera de Maria Augusta mas sim o que acontece diante dela. As histórias contadas pelos jovens, suas motivações para os crimes pelos quais são acusados, a relação desses jovens com a família, o interrogatório feito pelos promotores e a tentativa da juiza em estabelecer um dialogo com eles é o que envolve o espectador.

O espectador fica perplexo com o que os jovens e seus familiares falam. Esse espectador, público de cinema, avalia as narrações a partir de sua lógica. A lógica da classe média. Ele fica perplexo ao ver e ouvir reações inesperadas e incompreensíveis dos familiares e dos próprios jovens durante o interrogatório. Não entende como uma jovem prefere ficar presa a voltar para casa e como um irmão não defende o outro acusado de esfaquear um pai extremamente violento. A lógica do espectador não compreende a lógica do interrogado, a lógica de quem vive uma outra lógica, a lógica da miséria.

A tentativa frustrada de comunicação entre a juiza e os jovens ultrapassa a perplexidade das histórias. E é através da Juíza que o espectador se coloca em cena.

O espectador de Juízo não se identifica com o objeto, jovem. O espectador se identifica com a encenação da juíza que tenta representar a família, a escola, o estado, as instituições responsáveis por esses jovens. O espectador representa um desses papeis. Ele também é ausente na vida desse jovem.

A Juiza sabe que está sendo filmada e reage a presença da câmera. Ela reage ao olhar do outro. Do outro câmera da Maria Augusta e do outro espectador. Colocando em jogo sua própria mise en scène. Ela se entrega ao filme. Ela faz uso da câmera. Ela quer falar para quem quiser ouvir que esses jovens precisam de ajuda e que a instituição a qual ela representa não funciona.
O desastroso diálogo entre Juíza e jovem, em que a lei tenta se fazer entender mas que o jovem não sabe entender, é uma espécie de grito, de pedido de socorro.

Juízo é mais que um filme, é um pedido de socorro.