quinta-feira, 2 de julho de 2009

Autores: Flora Diegues e Guilherme Ripper

“Um Instante de Inocência” e “Salve o Cinema” são dois filmes do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf dos anos 90. O primeiro é uma tentativa do diretor de recuperar a sua juventude e representar um momento determinante na sua vida. O segundo é uma louvação ao cinema, uma possível resposta para “o que é o cinema?”. Através de testes de elenco, ele mostra como a sétima arte interfere na vida das pessoas.

“Você quer ser ator?” é a pergunta que a filha de Makhmalbaf faz ao policial que chega em sua casa perguntando por seu pai nos primeiros minutos de “Um instante de inocência. É também a pergunta que Makhmalbaf faz em um anúncio de jornal convocando interessados a atuar em seu próximo filme “Salve o Cinema”. A resposta da população para o segundo é surpreendente e até assustador. Milhares de pessoas vão até o ginásio tentar um papel para filme. O tumulto e a desorganização eram inevitáveis. Homens, mulheres e crianças se estapeavam para conseguir a ficha de inscrição para o teste. Assim uma primeira questão nos vem a cabeça: por que esse fascínio pela arte de representar?

O primeiro e segundo tópico do texto “Sob o Risco do Real” de Comolli sugerem uma resposta para nossa dúvida. Ele defende que, hoje, nossas relações sociais são dramatizadas, “nossas fantasias e nossas necessidades são roteirizadas”, afirma que há uma mão invisível que nos alinha e nos conduz. Essa mão invisível são as imagens que absorvemos diariamente sem nenhuma espécie de filtro , que nos dá acesso ao mundo e nos enquadra aquilo que chamam de nossa realidade, tentando padronizar a vida das pessoas. Vivemos em época de “toda ficção de tudo”, interpretamos nossos próprios papéis muitas vezes sem saber porque, apenas seguindo um roteiro pré-estabelecido. E, se somos atores de nós mesmos, por que não atuar de verdade? Todos nós exercemos o papel de atores dirigidos pela indústria da comunicação, do entretenimento e da informação. Mesmo no Irã, teoricamente fechado para cultura ocidental, existe o domínio da indústria. Em “Salve o Cinema” isso fica claro na hora em que Makhmalbaf pergunta que tipo de ator eles querem ser e qual gênero eles mais gostam. Com poucas exceções, todos têm como referência o cinema americano; imitam os atores americanos mesmo sem os conhecer direito nem tê-los visto.

A padronização, no que Comolli chamará de a “Era das Programações”, é algo que na vida real acaba fugindo do controle. Podemos padronizar o cinema, podemos padronizar os jornais, podemos até padronizar grupos e instituições sociais, mas como padronizar o indivíduo? Makhmalbaf nos dois filmes trabalhados aqui foge do cálculo seguro; os acontecimentos da hora vão mudando o caminhar da história. O diretor permite que a subjetividade do personagem exista (se desdobre) no momento em que ele está sendo filmado, liberando aquilo que não é visível e, mesmo que não perceba, modifica aquilo que estamos vendo.

Toda essa predisposição do mundo às imagens (nesse caso a filmes) é algo a ser encarado de forma questionadora. Nos vêm mais umas perguntas: o que é o cinema e qual a importância dele para mundo?

Comolli dirá que cinema é a narrativa de fatos sem preocupação com a objetividade. É assumido que há um olhar direcionando o ponto de vista, e a partir disso as características pertencentes antes ao fato se perdem para a subjetividade de quem dirige o olhar. Tanto na ficção quanto no documentário. Como a ficção foi tomada pela padronização da indústria, cabe ao documentário mostrar as fraquezas, os descontroles, o imaginário humano.

Makhmalbaf em “Salve o Cinema” dirá que o cinema de hoje é espetáculo, é enganação, mas uma enganação que todos querem e buscam. Todos os homens e mulheres que se apresentaram no teste buscavam uma forma de mudar de vida, de controlar aquilo que inevitavelmente não têm controle, de se livrar de suas frustrações. E ele, fazendo papel de diretor durão, prova a força que o cinema tem sobre as pessoas, provando para o espectador que, no fundo, tudo não passa de uma grande mentira. Como exemplo, o momento em que duas meninas de aproximadamente 16 anos, que têm o sonho de virarem atrizes, são desestimuladas por Makhmabaf, que afirma que ao se tornarem artistas elas deixarão de ser boas pessoas. As meninas deixam a sala de teste imediatamente acreditando cegamente no que o diretor está falando. Ele exerce para todas aquelas pessoas um papel de Deus, reflexo da posição do cinema hoje.

Em “Um Instante de Inocência”, o papel de Deus exercido pelo diretor é quebrado o tempo todo, provando que mesmo ele, criador de filmes, objeto que hoje é a representação plena desse sujeito controlado, pode perder o controle. O final do filme que, teoricamente, era pra ser o jovem Makhmalbaf apunhalando o policial, é mudado pela fragilidade dos atores. Ao invés disso, o jovem policial finalmente consegue entregar a flor a sua amada, e o jovem Makhmalbaf, ao invés da faca, entrega um pão ao policial por não acreditar na violência como forma de salvar o mundo.

Dentro dessas possibilidades, é compreensível o fascínio que o cinema exerce em seus espectadores. A chance de recriar a realidade, mesmo que por alguns instantes, é sedutora. Numa cultura tão marcada por sentimentos de culpa e desamparo, é inegável a vontade de viver outras vidas, vislumbrar novos pontos de vistas; encarar outros dilemas. E pela oportunidade de mudar histórias, remontar os fatos e desconstruir uma realidade que nem sempre é tão acolhedora, salve o cinema.

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