sábado, 4 de julho de 2009

Os dispositivos do real em “Juízo” e “Dez”

Autores: Rodrigo Castello Branco e Yuri Amorim

Existe um traço que liga “Juízo”, de Maria Augusta Ramos a “Dez” de Abbas Kiarostami: este traço é certo tipo enquadramento fixo que chama atenção para si mesmo, evidenciando o dispositivo por trás de ambos os filmes. Por mais díspar que um filme seja do outro, desde seu projeto, suas ambições e temáticas, tanto o brasileiro quanto o iraniano guardam algumas semelhanças que nascem da questão de um dispositivo que irá nortear do início ao fim a narrativa; mais do que evidenciado, este dispositivo será anunciado – em cartelas numéricas em “Dez” ou textuais em “Juízo”.

Jean-Claude Bernardet discorre sobre o rigor dos dispositivos nos filmes-estruturais americanos dos anos 60 em seu texto sobre o longa de Kiarostami. “Juízo” poderia entrar nessa definição, embora sofra de menos rigor do que estes outros. Seu “relaxamento” consiste em não seguir na totalidade do tempo um método específico, embora o núcleo do filme seja todo ele baseado em um dispositivo claro. Já que Maria Augusta não podia filmar os menores do Padre Severino, ela resolveu elaborar uma construção rígida em que todas as falas seriam encenadas, todas filmadas da mesma forma, com uma câmera digital fixa no tripé, apontada para o mesmo local, com os atores posicionados iguais e falando na mesma direção.

Essa mesma descrição poderia servir, em parte, para “Dez” de Kiarostami. A utilização da câmera digital fixa apontada para personagens que se alternam em aparições repete o mesmo procedimento de “Juízo”. No entanto, enquanto que Maria Augusta parte de uma necessidade, Kiarostami parte de uma escolha. Kiarostami faz uma seleção do espaço, de um recorte do enquadro dentro de um recorte maior, do carro; Maria Augusta parte de um recorte já estabelecido pela ordem natural dos acontecimentos e deste espaço proposto pelo mundo confecciona a sua ficção. Kiarostami de certa forma também não deixa de se utilizar do mundo para dele criar seu enquadramento: da janela lateral do carro ele seleciona o ângulo, que vai determinar o quanto de exterior, de interior e de personagem a câmera vai pegar. Em “Juízo”, o fundo branco, imutável; em “Dez”, as ruas de Teerã são o que evidenciam o carro em movimento. A mesma origem para o dispositivo, inúmeras possibilidades.

Ambos os diretores escolheram o digital para realizar seus filmes. Essa escolha ressalta mais uma questão importante: a intermitência da gravação, chamando mais uma vez a atenção para o dispositivo, para essa câmera onipresente sala de audiência ou no automóvel. A possibilidade de se filmar sem parar. Em “Dez”, a própria noção de “diretor” e “equipe” é redefinida, visto que por trás das câmeras só o mundo, enquanto Kiarostami ficava escondido. Em “Juízo”, existe também uma outra questão de direção, um pouco mais complexa, que acaba chamando para a discussão o texto do Jean-Louis Comolli “Sob o risco do real”.

Comolli fala de uma “impossibilidade do roteiro” ao se fazer um filme documentário; em “Juízo”, o caso é ambíguo. Existe a necessidade de um roteiro a partir de uma não-necessidade; o roteiro nasce desse real. O real é o roteiro, só que a impossibilidade de apreender esse real faz com Maria Augusta recrie esse real, reproduza seus detalhes, suas falas idênticas, seus gestos e entonações. O roteiro que Maria Augusta propõe para seu dispositivo não passa de uma mimese do que realmente aconteceu; a ficção não passa de uma cópia do real, inclusive ao se colocar atores “que poderiam ser os mesmos infratores”, que passaram pelas mesmas condições.

Comolli posiciona o real num local que “se encontra lá com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas, em todo o tecido que trama a máquina cinematográfica”. O “real” em “Juízo” parece se encontrar realmente “fora da imagem” mas “presente nos corpos”. O real está no corte, entre a juíza falastrona e o ator mirim. O real se esboça nesse momento. No corte cronológico e óbvio que seguiria de um campo para o contracampo; pois a juíza contempla o real enquanto o ator contempla o ficcional; entre os planos que nasce essa força, pois a juíza contracena com o verdadeiro e o ator repete os gestos do verdadeiro. O dispositivo se funda nesse embate constante entre aquilo que aconteceu e a reprodução do acontecido. Um campo nunca se unificará com o outro, pois foram confeccionados em espaços-tempos distintos; “Juízo” nega uma reunião que “Dez” vai ter como condição básica (porém escondida).

Em “Dez”, o espaço entre os cortes também sempre se isola. Um personagem não extrapola o seu campo, não cruza para o outro, fechado em seu recorte 4:3, na sua janela. No entanto, em “Dez”, a própria organização do dispositivo possibilita esse reencontro entre os dois planos. Se em “Juízo” algo se perde e depois se funda num intervalo de corte, em “Dez” há sempre o acúmulo constante, a enumeração das cartelas e a edição que vai ladeando os planos e os personagens, até o momento em que o dispositivo fica submetido “a pressão do real”, como coloca Comolli. O dispositivo se deixa ruir, se entrega para o real, para algo incontrolável, para um gesto que nem o próprio Kiarostami poderia coordenar (embora deva ter dirigido) – quantas vezes será que foi repetido? Será que foi repetido? De qualquer forma, o real não só do mundo, mas dos personagens, dos seres humanos, da própria câmera – o real de tudo acaba com o dispositivo, o derruba, que cruza os quadros, que vence uma barreira invisível. E esse não deixa de ser o objetivo de Kiarostami: construir um dispositivo que não se encerre em si mesmo, que não se feche ao mundo. A carreira do diretor iraniano não possibilitaria esse enclausuramento. Mesmo em “Five”, provavelmente seu filme mais hermético, há uma saída, algo que foge do controle da câmera.

Tanto em “Juízo” quanto em “Dez”, é o tal “profeta do desconhecido de um mundo a vir” que se materializa nos dispositivos. Que mundo é esse não se sabe. Em “Juízo”, o dispositivo sai da sala de audiência para se perder nas celas. A brincadeira dos presos não é controlada (ainda mais, é inventada na hora para a diretora gravar), vence um plano fixo, rígido, dá movimento à passividade do ator que executa gestos. O embate mais uma vez entre aquilo que pode ser controlado e o incontornável peso do real. E quando isso ocorre, tanto os menino, a mãe, a prostituta ou os meninos do Padre Severino se tornam seres de cinema. Habitantes de mundos restritos. A tela de cinema, um recorte do mundo; a sala de audiência, um recorte dentro da tela, assim como o carro e sua janela para o mundo. A tela de cinema como janela para o mundo, para o real. O real que brota de qualquer lugar, de um mundo em movimento ou de um mundo paralisado. Um real espontâneo ou controlado, um real que não se define, não toma forma; pelo contrário, se espreita pelas beiradas, se esgueira entre um plano e outro e desse instante, desse fragmento de centésimo, nasce do dispositivo.

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