segunda-feira, 6 de julho de 2009

Autor: Carlos Eduardo Ribeiro Confort

Rua de Mão-Dupla, de Cão Guimarães é uma experiência das mais agradáveis no audiovisual experimental.

A idéia a do filme é, em primeira analise, simples e pode ser simplificadamente descrita: Um grupo de seis pessoas é dividido em três duplas. A cada pessoa é dada uma câmera para que filme sua estadia de 24 horas na casa da outra pessoa de sua dupla. Os participantes / personagens do projeto não possuem qualquer informação sobre aqueles de quem os apartamentos filmam e é a partir desta estadia que as impressões serão construídas, impressões estas que serão captadas pelo diretor no final dessas 24 horas. As imagens da filmagem de cada dupla são apresentadas simultaneamente com a tela dividida.

Até aí se percebe uma idéia simples. Porém com o passar do filme torna-se notável que o objeto, antes visto como o perfil que um é capaz de traçar do outro, é muito mais que isso. A pessoa que filma o apartamento alheio e cria uma imagem do morador daquele imóvel tem como base apenas suas referencias de vida; sua educação, seu entendimento de mundo, gostos e etc... A partir daí fica claro que ao expor suas impressões os personagens acabam por expor muito mais eles próprios; quem eles são, o que lhes chama mais atenção, o que pensam sobre gostos diferentes e como se comportam perante eles, seus valores e concepções de como deve ser a vida.

A intenção de objetivar a relação das pessoas com o outro através de sua relação com elas próprias torna-se, em Rua de Mão-Dupla, possível graças as restrições que o próprio diretor cria e impõe ao formato como esse filme é feito. São seus dispositivos.

Com esta afirmação feita é possível relacionar as analises de composição e objeto do filme com um trecho do livro Caminhos de Kiarostami, de Jean-Claude Bernardet. Neste trecho, que vai da página 11 até a página 43, Jean-Claude Bernardet destrincha alguns aspectos estéticos do direto iraniano Abbas Kiarostami.

Podemos relacionar o filme de Cão Guimarães com partes da analise de Bernardet. Logo na página 11 Bernardet relaciona o titulo do filme Ten, de Kiarostami, com a forma com que esse filme é composto, em 10 Blocos. Isso, segundo o autor, sendo a leitura mais obvia. Porém já na pagina 14 Bernardet faz ressalvas: “[...] apesar da referência rigorosa à construção, o número do título não deixa de ser algo aleatório, pois ele poderia ter nove ou onze blocos e o título seria Nove ou Onze” (pág. 14). Ainda assim, até aí, o titulo refere-se apenas a composição de Ten.

Já em Rua de Mão-Dupla a analise pode ser mais aprofundada. O titulo, de cara e até mais instantaneamente que em Ten, remete a composição do filme, a tela dividida em duas deixa clara essa associação. Tudo acontecendo em duas vias ao mesmo tempo, cada uma indo a uma direção. Somado a isso, temos a possibilidade de associação do titulo do filme ao seu conteúdo. As relações interpessoais já são por natureza uma via de mão-dupla, Cão Guimarães nesse filme estica esse conceito, deixando difusa e/ou tênue a fronteira entre analise do outro e auto-exposição.

“Estrutura e temática se relacionam” (pág. 26). Essa afirmação e feita a respeito de outro filme: (nostalgia), de Holis Frampton, que tem as mesmas características na relação entre composição e tema que Rua de Mão-Dupla.

O outro texto que vai de encontro com as analises de Rua de Mão-Dupla é Carta de Marselha sobre a auto-mise em scène.

Ao fazer a leitura do texto tendo o filme de Cao Guimarães em mente, a primeira sensação que se tem, o primeiro pensamento, precipitado, é de que o formato poderia eliminar a auto-mise em scène.

Levando em consideração algumas passagens da carta:
- “Há em todo mundo um saber inconsciente do olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, de postura”
- “Todos aqueles que eu filmo são já atores em outras mises em scène, que precedem e, às vezes, contrariam aquela do filme”

Isso ocorre por dois motivos: Os apartamentos estão vazios, as únicas pessoas presentes em cena são os próprios personagens que estão por trás da câmera. Porém essa impressão, de novo, precipitada caem por terra quando os personagens aparecem em cena. Em duas situações: Na primeira eles dizem suas impressões sobre o morador do apartamento onde ainda estão. Fica claro o “saber inconsciente do olhar do outro”. O músico comporta-se diante da câmera, exatamente como se espera que um músico se comporte, as falas, os gestos, tudo cabe perfeitamente naquele personagem e na sua relação de imagem com o mundo e do mundo com ele.

O mesmo ocorre com o ato de beber um vinho, durante a cena, de uma mulher de classe media-alta e o de sentar no chão, em jornais de um poeta.

É no fim do bloco de cada dupla, principalmente, já que o músico se coloca em cena logo no inicio do filme, que a auto-mise em scène se faz presente de forma flagrante.

Como pode se perceber nesta analise, o filme de Cao Guimarães é um filme recheado de camadas e pode e deve ser analisado por varias perspectivas diferentes e que, felizmente, se completam tornando-o um projeto, como dito no começo desse texto, uma experiência bastante agradável.

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