sábado, 4 de julho de 2009

Documentário: entre a conclusão e a relativização

Autora: Renata S. de C. Lima

“A MULHER NO CANGAÇO” E A LINGUAGEM TELEVISIVA

Acho este trabalho um misto entre documentário e ficção, assim como um misto entre filme e vídeo para tevê. A linha entre essas definições é tênue e na dúvida adotarei o termo documentário por estar se tratando de um tema antigo.

Descritivamente, as características do filme são: a ficção que reencenaria a vida dos cangaceiros, marcada pela imagem em preto e branco, em slow motion e a dublagem de algumas falas dos atores; uma narração predominantemente do repórter, mas também feita por uma cangaceira; as entrevistas em colorido; a música muito presente nos momentos de ficção; imagens feitas com cangaceiras “atualmente”, que podem ser reencenações, ou não (creio mais que não sejam); e a equipe que não aparece nas imagens.

Analisarei estes dados para falar um pouco como eu enxergo o filme. Começarei pela narração. Ela é feita por um repórter a partir de um texto sobre cangaceiros que alguém da rede globo escreveu. Isso já é uma ficção. Ele derivou provavelmente de uma pesquisa que imagino ter sido muito baseada na memória dos que viveram de alguma forma com ou como cangaceiros. A memória seria, então, uma primeira ficção, que existe antes daquela, presente também na narração da própria cangaceira. De alguma forma, o que ela fala é tanto “criação” quanto o que o repórter lê. Apesar disso, eles têm o papel bem diferente no filme.

O jornalista seria o responsável por trazer a verdade, por enquadrar o grupo num discurso fechado sociológico formal, quase didático, superficial engessado em só um ponto de vista e que não deixa os personagens se mostrarem, ao contrário controla-os, e o mais perigoso: dramatiza exageradamente e o esteriotipa. Os cangaceiros se tornam só uma coisa, o que o programa quer que sejam. Ele não aborda aquelas pessoas no seu particular, no que elas tem de especial, mas de forma geral, se preocupando em enquadrá-las em um papel cênico e em tornar a vida dos cangaceiros um filme de aventura prontinho para ser vendido, no qual muita gente irá acreditar. Você não vê, sente e assim constrói o que seria um cangaceiro, você recebe um discurso pronto, fechado. Essas, para mim, são características muitos fortes na linguagem da televisão, já presentes naquela época, das quais achei que o filme não conseguiu escapar.

Frases que ilustram tudo isso são: “Ele surge de uma realidade cultural complexa e de uma realidade social cheia de contradições”; “O cangaço se transformou em símbolo da coragem da fé e da fama.” (indícios do gênero aventura); “Esse esforço social da mulher do nordeste como o de qualquer mulher pobre de qualquer lugar do mundo, pode ser visto no seu desenvolvimento muito precoce...”; “e ela sonha com o direito de ser feliz” (dramatização/será que elas eram infelizes? Como falar por elas?); “A cangaceira era como uma mulher qualquer, uma espécie de dona de casa sem casa” (mulher=dona de casa); “Como qualquer mulher ela sofre as restrições ao tabu e às restrições de casa”(esteriotipando o lugar da mulher na sociedade).
Pessoalmente, acho que a narração do repórter realmente atrapalha muito e traz outro sentido ao filme.

Quanto à narração de cangaceiras, é uma fala mais pessoal, mais próxima do “real”, da estória, mais espontânea. Nos fornece dados subjetivos para construirmos aquela história, através do sotaque, gírias, entonação... Se formos pensar, é meio estranho alguém, no caso o repórter que não viveu nada daquilo, depois de anos, falar com tanta certeza sobre este assunto. Por outro lado, achei também, que essa narração serviu para reafirmar o que a narração do repórter dizia.

Pensando em relação às entrevistas, achei que enriquece o filme vermos as ex-cangaceiras falarem, mas, por outro lado, achei que foram selecionadas as partes da entrevista que correspondiam de alguma forma ao esteriótipo de mulher sofrida. Deu-se uma importância muito grande à essa idéia. Não sei se isso ocorreu também, porque os entrevistados estavam tentando dizer o que achavam que o entrevistador esperava ouvir. Não sei se essas pessoas tinham acesso à televisão, naquele momento, mas a própria presença da câmera já pode ter trazido essa pressão. “A vida é dura, passando fome para cuidar de todos os três...”

As imagens são de dois tipos, umas encenadas e outras documentadas. Ambas têm grande força e criam um imaginário muito forte. Elas falam muito por si só. A idéia da encenação é muito interessante, pois recria-se pessoas e o cangaço de uma forma que ás vezes esquecemos que é tudo ficção. Ela é uma realidade em si, ou seja, ela foi elaborada a partir de memórias mas abordando tudo de uma nova forma, com um ar místico. A música, também faz parte dessa ficção e ela tem um papel muito importante de nos envolver, mas sem rotular. Acho que em outro filme, talvez ouviríamos uma musica de wester.

“WILSINHO GALILÉIA” E SUA RIQUEZA DE ABORDAGENS

O documentário é muito rico e profundo. Primeiro pela variedade de tipos de imagens. São usadas encenações, falas dos atores se apresentando e falando sobre o seu personagem, depoimentos, imagens de arquivo de jornais e filmadas, imagens narradas pelo diretor rapidamente, imagens de cobertura principalmente de crianças e imagens que remetem ao processo de filmagem. Elas são usadas de forma livre, independente, ou seja, nem sempre a imagem é a correspondente à do áudio; ou se vê a pessoa cuja voz estamos ouvindo; ou se mostra o que se fala. A câmera é livre e em algumas horas abandona o tema principal para passear pelo local.

Não há radicalismo em relação à forma. O que evidencia isso é como o diretor deixa o filme falar e por isso o acaso penetrar. Ele propõe situações, como ir entrevistar o irmão mais novo de Wilsinho ou como os atores se apresentarem; inclui o que acontece na filmagem que não foi programado e que mostra a dificuldade de algumas pessoas em falar para um filme, como na cena em que o irmão foge da entrevista ou que o dono da casa briga com o diretor dizendo que não quer participar; a mudança de postura da mãe do Wilsinho quando passa a ser a entrevistadora, não a entrevistada e ganha do diretor autonomia para isso; a voz dada à criança que queria também dar seu depoimento; as perguntas que buscavam saber o porque mas que deixavam os entrevistados dizerem o que quisessem. Isso tudo fala do Wilsinho, mas também do fazer documentário e da metodologia do diretor . O que também comprova isso é o fato de não esconderem suas perguntas e de mostrarem sua mão segurando o microfone o que não era muito bem visto pela Globo como dizia no texto “ A escola da televisão” e o que não ocorre no filme do Hermano Penna. Lá o repóter-herói aparece, mas o repórter-diretor não (um exemplo é a entrevista à ex-cangaceira) .

Outro aspecto é que o diretor vai fundo no assunto; não se satisfaz com a resposta, mas vai até ela. Primeiro, pela diversidade de opiniões, não se busca fechar um significado e convencer o público dele, mas mostrar os vários “eus” de Wilsinho, como tem qualquer pessoa, humanizando-o. Depois, pela necessidade de complementar as informações ao mostrar como era o lugar em que morava o personagem , as pessoas da família dele, os presos que conversaram sobre o porque de roubar. Sempre perguntando o porque das coisas; o João Batista de Andrade não se contenta apenas com depoimentos superficiais. Se a mãe de Wilsinho fala sobre os irmãos dele, o diretor vai até eles para ouvir deles o que têm a dizer.

Voltando a quando o diretor filma o local onde Wilsinho morava, ele dava um grande enfoque às crianças e pensei que talvez ele pudesse estar remetendo a um possível espírito infantil do personagem ou à infância pobre do protagonista e que talvez aqueles meninos possam ter o mesmo futuro trágico.

O filme traz uma busca por respostas, mas não por conclusões..

A narração aqui, quando é por parte de quem “domina” o filme, tem a função rápida de passar informações introdutórias, factuais como idade e o dia da morte. Nunca convencer, falar por alguém, explicar, contar ou emitir opinião como no filme de Hermano Penna.

Outro artifício usado é a brincadeira com o tempo. Ele faz com que o ator que representa o Wilsinho, mas que está morto, interaja com o presente. Isso ocorre quando uns homens dão seu depoimento num bar e de repente o Wilsinho/ator entra e começa um assalto ou quando na cena final ele visita a sua casa que fora queimada. Quando vemos imagens só do Wilsinho olhando para a câmera e ouvimos suposições sobre sua vida e suas motivações, parece que o Wilsinho estava vendo o que falavam, rindo e achando tudo isso engraçado e talvez sem importância.

Falando mais especificamente sobre a ficção criada, o diretor coloca um ator para representar o Wilsinho e o recria, faz ele ser uma pessoa, de alguma forma, interessante, apesar de todas as pessoas que matou, não de um cara mau. Há uma grande ficcionalização do personagem Wilsinho mas que o filme deixa claro que é um dos muitos Wilsinhos do filme. O perigo aqui, das pessoas tomarem como verdade aquele Wilsinho não existe pois no documentário deixa-se claro que ninguém ainda conseguiu “dominar” a personalidade dele. Já no filme “As mulheres no cangaço” mostra-se apensa um ponto de vista, o da edição, do narrador.

Por último, há uma organização circular. Começa com ele sendo morto e vemos isso pelo lado de fora da casa, somente ouvidos os barulhos e termina da mesma forma, mas desta vez acompanhamos isso de dentro do apartamento. Uma interpretação possível é que não há fim, saída, resposta, certeza.

Os dois filmes embora feitos na mesma época são bem diferentes. Enquanto um conclui o outro busca relativizar.O primeiro está mais aos moldes do documentário televisivo da Globo e o outro não sei como, conseguiu driblar melhor o controle da mesma. A temática que aborda uma forma de representar o povo ( em um o cangaceiro em outro o delinqüente)e a ficção(por mais diferente que sejam as imagens) sejam talvez pontos em comum entre eles.

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