segunda-feira, 6 de julho de 2009

Autora: Ana Beatriz Salgado

No filme Serras da Desordem, Andrea Tonacci fala sobre Carapiru e sua experiência de uma década de isolamento por causa da intervenção do homem ganancioso, que quer tomar as terras para si, e deparar-se com a sociedade brasileira no final dos anos 80. O diretor narra a vida desse personagem a partir da sua identificação com essa historia, pois no momento que resolveu fazer o filme ele passava por uma situação de possibilidade de separação de seu filho. O diretor, através de Carapiru, também traduz seu sentimento frente ao mundo globalizado que passa por cima de ideais em prol de seu próprio beneficio, desapropriando terras de tribos indígenas a fim de desmatar e usar as árvores para alimentar as indústrias.

Como Jean-louis Commolli diz em seu texto “Sob o risco do real’”, “os filmes documentários não são somente abertos para o mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo”. O filme de Tonacci é aberto para as questões sociais e políticas do Brasil moderno. O personagem bota em xeque a idéia desse mundo supostamente globalizado, moderno, industrial e com direitos iguais a todos. O índio fica a mercê do Estado e da FUNAI, são eles que decidem seu paradeiro, ele não tem mais autonomia sobre seu destino. Foi o próprio Carapiru quem escolheu ir até o povoado da Bahia após dez anos de isolamento e se deixou ser encontrado para enfim conviver com outras pessoas, mas o Estado intervém e o leva a Brasília e Sidney Possuelo apropria-se de seu destino e de sua narrativa.

Há uma cena marcante no inicio do filme onde vemos, por longo tempo, a tribo indígena nua, banhando-se na água e divertindo-se, interagindo entre eles sem prestar atenção na câmera. Num primeiro momento, é difícil imaginar que uma tribo que supostamente não tem contato nenhum com tecnologia esteja ignorando tão facilmente a presença daquele aparato tecnológico. Eles passam uma naturalidade, plenitude naquele momento. Pelo comprimento da seqüencia, esquecemos que é um registro e entramos na diegese do filme. O tempo ‘morto’, onde nada substancial acontece realmente, representaria o tempo dos índios, o tempo da natureza, um tempo que Tonacci gosta de chamar de “vivo”.

O diretor aponta um discurso, referências que nós brasileiros vivemos, mas a que o índio foi sempre alheio, “uma espécie de ‘enquanto isso...’, com Carapiru errante pelo interior do país e Tonacci experimentando empiricamente os humores daquela imagem”, numa espécie de vídeo-clip, comentando o projeto de modernidade brasileira.

Ao final do filme, a ilusão de que o aparelho funcionara por conta própria sem direcionar o olhar é desfeita, a partir do momento que percebemos que Carapiru vai para o mato sozinho e o vemos cercado pelo diretor e sua equipe, filmando o começo do filme em que ele foi retratado isoladamente, reencenando o tempo que passou sozinho na mata. Após o baque do esfacelamento da ilusão, Carapiru aparece sentado olhando pra câmera na forma ‘tradicional’ de documentário e começa a falar sua língua nativa, o guajá. Mesmo sem entendermos uma palavra, é um dos raros momentos em que ele aparece falando, parece querer contar algo. É possível ver isso por sua expressão no olhar e por seus gestos. Não precisamos entender o que ele diz pra entender o que ele quer dizer, por isso a opção do diretor de não botar legenda, que reduziria e aprisionaria seu discurso. Durante a fala do índio, ele aponta algo no céu e a câmera instintivamente nos leva até lá. Passa um avião de computação gráfica, que dá uma sensação de embate, conflito, como se aqueles dois mundos não pertencessem um ao outro. É quase um embate, a modernidade dos brancos esmagadora das diferenças. Há, ao que me parece, um estranhamento de mundo, colisão de realidades que se contrapõe, mas também se complementam por habitarem o mesmo espaço. Tonacci narra essas “fissuras do real, daquilo que resiste” ao mundo capitalista pragmático e programado. É um personagem que produz “buracos ou borrões nos programas, que escapam da ordem majoritária” ¹. É o que interessa ser apresentado, descoberto, esmiuçado.

A tendência do cinema é convergir “para o jornalismo, para o mundo dos acontecimentos (...) elaborando a partir deles ou com eles as narrativas filmadas; e se separa do jornalismo na medida em que não dissimula estas narrativas, não as nega, mas, ao contrario, afirma seu gesto, que é o de reescrever os acontecimentos”. Tonacci combina sua narrativa com elementos jornalísticos, mas não se apóia neles como base, e sim como uma forma de reafirmar que aquilo realmente aconteceu, que não é uma narrativa fictícia mesmo que se reencene certos aspectos da vida do índio. O cinema funcionaria como uma “repetição do conhecido”, um reforço do que já aconteceu, do que já existe independente dele. Assim, “o projeto documentário se forja a cada passo”, reinventa-se em seu processo, cria em cima do que já existe, mas dá uma nova conotação e monta uma narrativa a partir desse ‘real’, não utilizando as imagens necessariamente na mesma ordem. A montagem é crucial para dar novo sentido a planos porque depende do contexto em que está inserido. Quando vemos Carapiru na aldeia isolado e comendo sozinho, naquela situação, dá a impressão de que ele não se inseriu na tribo novamente, como se tivesse, por escolha própria, permanecido apartado. No caso, Tonacci explica que, por ter ido à cidade, Carapiru adoeceu, por isso o afastamento.

Serras da Desordem busca “representar a estranheza de mundo”, escancarar o que “a ficção em nossa volta nos esconde escrupulosamente”, que “a cena é aberta, fendida, rompida” e que não somos conjuntos fechados. Temos a liberdade de representar e disseminar essas possibilidades de transgressão. Somos tão fechados dentro do sistema que nos é impensável passar dez anos vagando sozinhos, no mato. Mas é a partir do momento que vemos que há outras possibilidades, válvulas de escape, e que temos todo o potencial de acioná-las se bem entendermos.

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